A banda gaúcha Finita sempre pareceu trabalhar com afinco em busca de uma identidade própria. Além disso, desde a estreia com “Voices From Sanatorium” (2015), o grupo já dava sinais de que não estava interessado em apenas misturar subgêneros de Metal. Havia também um desejo de transformar sonoridades extremas em veículo para histórias próprias, onde tudo se conecta. O EP “Above Chaos” (2022) já dava uma boa amostra do que estava por vir. E por fim, quinze anos depois do início de suas atividades, “Children of the Abyss” é a materialização dessa ideia e o ápice desta jornada: trata-se de um álbum tão completo e rico que fica até difícil traduzi-lo em palavras.
Antes, é preciso tentar entender todo o conceito que envolve o álbum. O ponto de partida do disco é a reinterpretação do Caos. Ao invés de tratá-lo como um estado primordial, a banda o personifica como uma força criadora e destruidora que emerge para reescrever a ordem do universo. Dessa premissa surgem as “crianças do abismo”, entidades que carregam a ambiguidade do próprio mito: ao mesmo tempo responsáveis pela ruína e pelas sementes de um novo ciclo. A história, complexa, eu diria, se desdobra em episódios que envolvem a queda de divindades, o retorno de Lúcifer, magias e a dissolução das leis do tempo e do espaço. Não é uma história linear, pois a banda costura elementos filosóficos, literários e religiosos em um mundo simbólico próprio. E criar algo assim não é tão fácil. E musicalizar isso ainda mais. Mas os gaúchos de Santa Maria deram conta do recado com sobras.
Tanto a busca por uma identidade e a riqueza temática se reflete diretamente nas músicas, onze ao total, incluindo a introdução com “Womb of Night” (com belos pianos) e a bônus acústica “Mermaid Melody”. No geral, o álbum alterna entre diversos climas, indo de um extremo a outro com facilidade e desenvoltura numa mesma faixa. Em “Witch’s Laugh”, por exemplo, a voz declamatória em português, acompanhada por piano, soa muitíssimo bem construída; em “Quicksand”, o grupo usa de forma inspirada a fusão de ritmos árabes e o nosso baião, simbolizando culturas e forças colidindo dentro do abismo, ao passo em que insere um trecho veloz no decorrer da faixa, tipicamente Black Metal. Já “Gates of Oblivion”, com muito pedal duplo e ótimos arranjos orquestrais, mostra uma pegada cinematográfica bem nítida, algo que podemos sentir, aliás, em todo o álbum.
Tecnicamente, o álbum demonstra uma maturidade que a banda vinha ensaiando há anos. As guitarras de Bruno Portela ocupam um lugar de destaque: riffs de palhetada alternada evocam o Death Metal melódico, mas frequentemente se abrem em harmonizações em terças que expandem o espectro harmônico, aproximando-se do Metal sinfônico europeu. O baixo de Fernando ganha destaque ao alternar ritmos e linhas melódicas discretas, especialmente perceptíveis nas partes mais atmosféricas. A bateria de Pablo Castro foge da previsibilidade. Blast beats estão presentes, mas sem exageros; ao contrário, dividem espaço com grooves sincopados e usos criativos dos tons, quase como “pontuações”. Essa variação rítmica ajuda a manter as faixas em movimento constante, evitando a fragmentação.
Ouça o álbum:
Os teclados de Guilherme Pereira e os arranjos orquestrais de Pablo Greg e Evandro Dörner funcionam como uma espinha dorsal conceitual. Cordas e metais são equalizados para coexistirem com as guitarras, evitando a sobreposição artificial que frequentemente prejudica discos do gênero. Há momentos em que essas camadas parecem assumir um papel principal: ora soam como coros invisíveis acompanhando a ascensão do Caos, ora como vozes do próprio abismo, dissolvendo-se lentamente na massa sonora. A produção de Thiago Bianchi, no Estúdio Fusão, deixou tudo isso bem claro e orgânico.
Nos vocais, Luana Palma encarna a ambiguidade central do álbum. Sua alternância entre vocais limpos e extremos funciona de forma natural também e apresenta ótimos resultados. As partes guturais têm uma textura seca e direta, criando contraste com os belos arranjos que permeiam o álbum. Ao vivo, ela personifica tudo isso de forma intensa.
As referências musicais encontradas no álbum são claras, e lembram muito aquela vibe noventista, unindo a sofisticação harmônica do Therion, a complexidade do Septicflesh e a dramaticidade do Fleshgod Apocalypse, mas “Children of the Abyss” tem muito, muito mais.
Com “Children of the Abyss”, a banda parece ter alcançado sua melhor fase: um disco que consegue ser intenso e repleto de camadas. É uma obra que precisa ser compreendida, como se o próprio abismo descrito em sua mitologia se estendesse para dentro da música, convidando quem ouve a caminhar por ele. Mas não olhe demais para dentro do abismo, ele pode olhar de volta para você…

