Em meio a uma discografia encharcada de sangue e vísceras, o Flesh Grinder retorna com “Biacromioxifopubiano”, um título que por si só já evoca o vocabulário técnico de necropsia que virou marca registrada do grupo catarinense. Lançado em janeiro, o disco mantém o lugar da banda como uma das mais resilientes e viscerais do Goregrind sul-americano – uma sobrevivente da era analógica que se mantém ativa e afiada mesmo em plena era do streaming.
Não sei quanto ao resto do Brasil, mas aqui no Rio Grande do Sul costumamos chamar o estilo deste estilo de bandas de “podreira”. Temos inclusive grandes representantes do gênero por aqui, como as bandas Sarcastic, Vômito e Harmony Fault, todas da região da serra, como Farroupilha e Bento Gonçalves. E para os lados de Santa Catarina, o cenário é o mesmo.
Fundado em 1993 justamente no estado vizinho, na cidade de Joinville, o Flesh Grinder sempre se destacou não apenas pela brutalidade sonora, mas pela fidelidade à estética Splatter, tanto nas letras quanto nas artes visuais. Essa identidade é inseparável da trajetória do guitarrista e vocalista Fábio Gorresen (também conhecido como Necromaniak), que na vida real trabalha em um necrotério e cuja experiência direta com cadáveres moldou boa parte da lírica do grupo.
Gravado entre o final de 2023 e o primeiro trimestre de 2024 no estúdio Audio Goblin, o álbum foi lançado em formato físico limitado pela Black Hole Productions. Com dez faixas em pouco menos de 28 minutos, o trabalho é conciso e cirúrgico – como uma incisão bem-feita. O belíssimo título da obra, “Biacromioxifopubiano”, pode ser interpretado (não sou legista, tampouco expert em corpo humano!) como um plano ou eixo anatômico que une a linha entre os ombros (biacromial), desce pela linha média do tronco (passando pelo processo xifoide) e vai até a região pubiana e seria uma espécie de linha de dissecção imaginária, possivelmente usada em necropsias ou exames antropométricos — algo coerente com a temática forense da banda. É um termo técnico e obscuro, típico da linguagem do Flesh Grinder, mas que sintetiza bem o conteúdo do disco: precisão anatômica, frieza científica e brutalidade sonora. E olha quem não sou da área…
Logo na faixa-título que abre o álbum e é justamente a mais longa do álbum, temos uma avalanche rítmica de riffs com timbre cavernoso, linhas de baixo compressas e blast beats que sustentam vocais absolutamente putrefatos. É uma introdução emblemática do que virá a seguir: uma sequência de faixas com riffs que remetem à velha escola do Death sueco e um excelente trabalho do baterista Daniel Henriques, que faz uso da tradicional batida Goregrind (quem conhece sabe do que falo) com maestria. O ritmo de “Tanatognose”, de pouco mais de dois minutos de duração, foca numa velocidade ora cadenciada, ora rápida, sem apelar para a velocidade desenfreada.

Em “Green Bacterianus” o Flesh Grinder encaixa uma sonoridade mais rápida, com algumas quebradas e um solo de guitarra bem colocado. A produção é nítida o suficiente para que cada instrumento se destaque, mas sem esterilizar a sujeira que o estilo exige. Os vocais processados, ora grunhidos viscóides, ora guturais abissais, ampliam o senso de horror e decrepitude.
Embora o álbum seja de qualidade homogênea, algumas faixas se destacam, tanto pela sonoridade quanto pelos seus nomes escatológicos, como “Fossa das Flictenas”, um nome grotesco e imagético, onde podemos imaginar um local onde a pele entrou em colapso e se transformou num foco de infecção líquida. Uma festa das bactérias e gosma verde! O início de“Butyricum Clostridium” empolga até o mais rígido dos cadáveres com suas batidas empolgantes, o que ao vivo deverá causar um grande impacto.
A saideira, com “Metano, Cadaverina e Putrescina” condensa o conceito do álbum em composições curtas e caóticas, quase como flashes clínicos de uma mesa de autópsia. O disco termina antes que o ouvinte perceba, numa estratégia eficaz que evita o desgaste comum em álbuns de Goregrind muito longos. Daí então, é só colocar no repeat e seguir o “baile”.
A capa, assinada por Jansen Baracho, é uma verdadeira extensão visual do discurso sonoro. Com referências claras ao clássico corte em “Y” utilizado em necropsias, a arte apresenta uma figura humana em estado de dissecação, mostrando a fusão entre ciência forense e imaginário grotesco que a banda vem cultivando há três décadas. O cuidado estético também se manifesta na mixagem e masterização (por Rudolf Virchow e Maurice Letulle, pseudônimos que reverenciam figuras históricas da patologia), o que confere ao disco uma coesão rara em lançamentos do gênero.
“Biacromioxifopubiano” é um álbum que não busca inovar e, sinceramente nem precisa. A festa está garantida. O mérito do Flesh Grinder está em manter viva uma linguagem sonora extrema, mantendo-se fiel à essência do Goregrind enquanto atualiza timbres, intensifica estruturas e se ancora na experiência autêntica de seus criadores. Um épico da podreira com menos de meia hora de duração. E para aqueles que tiverem a oportunidade, encarar os “bailes” e dançar valsas Goregrind divertidas, é uma boa pedida.
Track list:
- Biacromioxifopubiano
- Tanatognose
- Green Bacterianus
- De Processus Corporis Apertio
- Artificialis Pathologia
- Hemicorporectomia
- Fossa das Flictenas
- Fenômeno Abiótico Transformativo Destrutivo
- Butyricum Clostridium
- Metano, Cadaverina e Putrescina
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