Desde sua formação em Brasília, em 1994, o Miasthenia construiu uma trajetória singular no Black Metal brasileiro ao se afastar dos clichês satânicos do gênero e firmar uma identidade pautada no resgate de mitologias, cosmovisões e resistências indígenas da América pré-colonial. Liderada pela vocalista, tecladista e historiadora Susane Hécate e pelo guitarrista Thormianak, a banda consolidou uma linha lírica e conceitual própria, abordando desde rituais ancestrais até episódios baseados na história do nosso continente. Ao longo de três décadas, com álbuns como “Supremacia Ancestral” (2008) e “Legados do Inframundo” (2014), o grupo refinou não apenas sua estética sonora, mas também sua proposta de devolver protagonismo à memória indígena e pagã por meio da linguagem extrema do Metal. Uma combinação perfeita que tem rendido ótimos trabalhos
Em “Espíritos Rupestres”, sexto trabalho de estúdio, lançado no ano passado, a banda aprofunda esse compromisso com a história silenciada dos povos originários. O álbum é construído a partir do conto “A Bruxa Xamã”, escrito por Hécate. A narrativa acompanha uma xamã ancestral, acusada de feitiçaria pelos inquisidores no Brasil Colônia, cuja jornada espiritual a conduz desde tempos rupestres até os levantes indígenas dos séculos XVII e XVIII. É um enredo que confere organicidade ao disco, que funciona como trilha para uma travessia entre tempos e territórios.

Musicalmente, o álbum equilibra peso e atmosfera. Os teclados de Susane adicionam camadas sinfônicas que dialogam com os riffs cortantes e melódicos de Thormianak, enquanto a seção rítmica — com Aletéa no baixo e backing vocals líricos e Lith na bateria e vocais extremos — alterna entre passagens ritualísticas e momentos de pura velocidade. O resultado é uma sonoridade densa, porém inteligível, com arranjos que valorizam tanto a agressividade quanto a construção de ambientes narrativos e melodia. Em alguns momentos as guitarras de Thormianak nos levam inclusive à uma sonoridade calcada no Metal tradicional, algo que já faz parte da identidade do grupo.
Faixas como “Evocação”, que abre o disco, e “Bruxa Xamã” servem como portas de entrada para esse universo, já “Cárcere da Inquisição” traz um misto de velocidade com uma pegada mais cadenciada, com a banda mesclando vocais extremos e limpos ao evocar os processos inquisitoriais ocorridos no Brasil Colônia, onde práticas culturais e religiosas indígenas foram demonizadas e reprimidas. Outro destaque é “Tapuia Marcha”, guiada pela velocidade e combinação entre melodia, com um solo bem trabalhado e refrão memorável.
Transmutação” encerra o disco com um tom quase contemplativo, sugerindo que a jornada espiritual da protagonista do conto não termina na fogueira, mas se projeta em outras formas de resistência. Enquanto o instrumental da música flui em diferentes direções, os vocais alternados entre o agressivo e o limpo dão a faixa a dramaticidade que ela pede, principalmente no trecho com vocal limpo de “O céu da floresta é liberdade. Grandes asas não se aparam”. De certa forma, a letra condensa os temas centrais do trabalho — opressão colonial, resistência espiritual e reconexão com o sagrado ancestral — e os traduz em versos de forte carga emocional e histórica, de uma riqueza impressionante.
Diferente de muitas bandas que investem em temáticas mitológicas de forma superficial, o Miasthenia mantém aqui o rigor que sempre a diferenciou, graças, principalmente, aos estudos de Hécate. O uso da língua portuguesa, a pesquisa histórica e o cuidado com a construção simbólica fazem de “Espíritos Rupestres” uma obra com propósito — mais do que apenas mais um álbum no subgênero. Aliás, se o mundo fosse perfeito, seria mais um CD da banda a ser utilizado em aulas de História.
“Espíritos Rupestres” é certamente um dos pontos altos da carreira da banda, reunindo o que de melhor criaram nestas três décadas, e só não é meu álbum preferido porque o debut “XVI” (2000) tem um lugar especial na minha coleção. Não pense duas vezes antes de dar play para ouvir este álbum!
Track list:
- Evocação
- Bruxa Xamã
- Cárcere da Inquisição
- Saga de Mil Povos
- Guerra dos Bárbaros
- Tapuia Marcha
- Guardiã dos Mistérios Rupestres
- Espíritos Rupestres
- Transmutação
Confira o álbum no Spotify:
Assista ao vídeo de “Bruxa Xamã”:

