Minas Gerais carrega uma tradição de famílias numerosas e entrelaçadas, onde muitas vezes se diz, com razão, que “todo mundo é primo de todo mundo”. Neste contexto de conexões familiares e raízes culturais, há também um dado curioso: sou primo “distante” de Bruno Leite Russi Maia, o Bruno Maia, idealizador do Braia e líder do Tuatha de Danann. A ligação vem de ramos maternos e paternos da nossa família, o que confere uma camada a mais de familiaridade à escuta deste trabalho profundamente enraizado na história mineira e na nossa própria história.
Lançado em julho, o novo álbum do Braia mantém a proposta do projeto solo de Bruno Maia de entrelaçar a tradição celta com as sonoridades e paisagens do interior de Minas Gerais. Mais do que fusão musical entre dois mundos, o disco é um exercício de memória e pertencimento, costurado por instrumentos como a viola caipira em afinação “rio abaixo” (quando a viola é afinada em sol maior, vide estilo de Almir Sater), flautas, bouzouki e elementos do Rock progressivo e até mesmo uns “Punk doido”. No final das contas, por trás das melodias de “Vertentes de Lá e Cá”, há uma jornada geográfica, histórica e de profundo amor por Minas Gerais.

Este é o terceiro capítulo da discografia do Braia, sucedendo os álbuns “…e o mundo de lá” (2007) — que mergulha nas tradições europeias, especialmente nas músicas célticas — e “…e o mundo de cá” (2021), voltado à herança musical brasileira. Como o próprio título sugere, “Vertentes de Lá e Cá” é um disco que busca os pontos de contato entre essas heranças culturais e propõe uma integração entre estes dois mundos tão distantes, o de lá e o de cá.
Um dos grandes destaques do disco é justamente sua faixa de abertura, “Emboabas”. Composta por Bruno Maia em parceria com Virgílio Chediak, a música fala sobre a “Guerra dos Emboabas” (1707–1709), um conflito muito importante na formação do território e da identidade mineira. A guerra opôs paulistas, os primeiros a adentrarem o sertão em busca de ouro, aos chamados “emboabas”, forasteiros vindos do litoral e de Portugal, interessados em explorar as mesmas minas. A disputa violenta terminou com a derrota dos paulistas e consolidou o domínio da Coroa portuguesa sobre a região das Gerais, criando as bases para a capitania de Minas Gerais.
Bruno Maia transforma essa história tensa e sangrenta em um tema musical inspirado, guiado pela viola caipira, vocais tranquilos e arranjos que remetem tanto às trilhas de filmes históricos quanto às baladas progressivas. As flautas e harmonias evocam o lirismo da música celta, mas com tempero claramente sertanejo. O resultado é uma belíssima faixa de abertura, que situa o ouvinte num cenário ancestral, marcado pelos conflitos. “Emboabas” é uma canção que diz: aqui começa a história. Mas também avisa: ela ainda pulsa sob os morros e serras mineiros.
Ao longo das 12 faixas, predominantemente instrumentais, “Vertentes de Lá e Cá” vai revelando outros capítulos desse retrato de Minas Gerais. Títulos como “Carrancas”, “Serra das Letras”, “Princesa do Sul” e “Ponta do Morro” não são apenas homenagens a localidades: são interpretações sonoras de paisagens, mitos e modos de vida. Bruno Maia, como autor e produtor do disco, compõe com um olhar de viajante e de contador de histórias, mesmo quando a música é apenas instrumental. É só deixar a viola rolar… bão demais!

A instrumentação é sofisticada, mas sem perder a rusticidade necessária: violas em afinações tradicionais, bouzouki, flautas, teclados e percussões criam camadas ricas, onde o erudito e o popular se encontram. A mixagem de Thiago Okamura respeita essa organicidade, permitindo que cada timbre ressoe com nitidez e calor. Faixas como “O Cururu do Ingaí” e “Ponta do Morro” poderiam muito bem aparecer como fundo em matérias do programa Globo Rural sobre queijo e café, tamanha a pegada caipira que carregam.
“Vertentes de Lá e Cá” é parte de um projeto cultural contemplado pela Lei Paulo Gustavo em Minas Gerais. Além das músicas, o álbum conta com material visual, textos explicativos e vídeos com acessibilidade em Libras, ampliando seu alcance a todos os públicos e seu papel como instrumento de valorização da cultura mineira. A proposta pedagógica e artística de Bruno Maia revela-se aqui em sua forma mais completa: ele não apenas compõe trilhas para o imaginário mineiro, mas constrói pontes entre passado e presente, tradição e invenção, lá e cá.
Abaixo, vídeos das três primeiras faixas.
Confira vídeo sobre a faixa “Emboabas”:
Confira vídeo sobre a faixa “O Cururu do Ingaí”:
Confira vídeo sobre a faixa “Serra das Letras”:
“Vertentes de Lá e Cá” é um disco de travessia. Um trabalho que ecoa como carta de amor à terra, à história e à música. Ao trazer à tona sua paixão pelo lugar onde nasceu, Bruno mostra o poder da música como ferramenta de resistência cultural e mais uma vez comprova que é um dos grandes alquimistas da música brasileira contemporânea, capaz de fazer da viola uma espada, da memória um canto, e da vertente um rio que liga mundos, agradando gregos e troianos, celtas e mineiros.
Além das plataformas digitais, o disco está disponível de graça em https://www.braia.net.br.
Track list:
- Emboabas
- O Cururu do Ingaí
- Serra das Letras
- Pagode Mouro
- Carrancas
- Princesa do Sul
- Ilhoas
- Hipólita
- Rei do Campo Grande
- Ponta do Morro
- Ventura (Mina)
- Vertentes
Confira o álbum no Spotify:
